A tal reforma ortográfica

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A reforma ortográfica do português, assinada em 1990 pelos países lusófonos, entrou em vigor este ano.

Antes de qualquer coisa essa tal reforma é desnecessária. O português tem como uma de suas mais charmosas características a adaptabilidade. E não poderia ser diferente.

Povos tão maleáveis como os brasileiros, angolanos e cabo-verdianos nunca se encaixariam perfeitamente na rigidez da língua lusitana.

Aceitamos o português à chibatadas, mas não sem a indolência de modificá-lo, de transgredi-lo, de moldá-lo à nossa forma, ao nosso jeito. Assim como aceitamos os santos adorando os orixás.

O português se renova a cada dia, a cada letra na folha do papel ou na tela do computador. Nós, os verdadeiros falantes e viventes do português, não dependemos de reformas oficiais, não precisamos que burocratas engravatados decidam qual a nossa língua. Fazemos isto todos os dias, nas ruas e nos livros.

A verdadeira reforma ortográfica é aquela feita pelo invencionismo mágico de Manoel de Barros e Mário Quintana que transformam palavras e realidades com a naturalidade de uma planta.

É a reforma Leminskiana. Rebelde, revolucionária, que bota fogo nas estruturas gramaticais do além-mar. Ou a Drummoniana, que de beleza e delicadeza cria um novo mundo a cada verso.

Dentre outros interesses existe também o de podar o português. Cortar suas diferentes folhas, suas coloridas flores. Transformá-lo em um novo inglês; prático, chato e sem a menor graça.

Nossa língua, seja ela brasileira ou portuguesa, se destaca pela versatilidade e insubordinação. As nuances das exceções, os múltiplos significados de uma palavra minúscula, a rigidez de outras grandes. A irregularidade dos verbos, a sujeitabilidade dos predicados.

Loucuras, devaneios? Não, é só beleza mesmo. Uma beleza que querem podar, que querem nos tirar. Mas como já disse, não é nos gabinetes que nossa língua se modifica e se recria.

O português brasileiro se renova nas linhas exasperadas, quase sufocadas de Chico Buarque. No invencionismo fantástico de Guimarães Rosa, na imaginação sem limites de Lygia Bojunga. Nas entrelinhas de Clarice Lispector, na narrativa inesperada de Lya Luft e na lascívia ardente de João Ubaldo.

Assim como o português moçambicano renasce nas páginas de Mia Couto, o angolano com José Eduardo Agualusa e em Cabo Verde com João Vário, e tantos outros por esse mundo que fala português.

A verdadeira reforma ortográfica acontece nas páginas e nas vidas dos arquitetos e dos pedreiros da língua. A dos escritórios preferimos deixar para o homens de gravata e poder.